Por Virginia Messina, dietista e activista, co-autora dos livros The Dietitian’s Guide to Vegetarian Diets, Vegan for life, Vegan for Her, Never Too Late to Go Vegan, Even Vegans Die. Escreve no blog The Vegan RD.
Como profissional de saúde vegana, por vezes fico envergonhada por estar associada com a ciência da treta que impregna a nossa comunidade. E como activista pelos direitos dos animais, fico desencorajada por iniciativas de activismo que nos possam fazer parecer cientificamente iletrados, desonestos, e, ocasionalmente, como um culto de teóricos da conspiração.
Há, contudo, um crescente movimento que procura criar uma abordagem à nutrição vegana mais honesta e baseada em evidência. E aqueles de nós que valorizam este esforço precisam de ter uma presença mais visível na comunidade dos direitos dos animais. Não podemos permitir que as nossas vozes sejam abafadas pelo ruído pseudocientífico. Precisamos que o mundo não vegano saiba que é possível uma pessoa manifestar-se a favor dos direitos dos animais enquanto adopta a integridade científica.
É com esta consciência que eu me lanço no debate sobre o mais recente documentário acerca da alimentação de base vegetal, What the Health.
O duo por trás do filme é composto por Kip Andersen e Keegan Khun, que são activistas pelos direitos dos animais. Eles também fizeram o filme Cowspiracy (que eu não vi), e eu admiro a paixão deles pelo activismo a favor dos animais.
Também aprecio o facto de o filme mais recente deles abordar uma quantidade de questões que merecem atenção. É, de facto, perturbador que organizações sem fins lucrativos como a Associação Americana do Coração aceitem dinheiro da indústria da carne bovina. E sim, é verdade que consumir uma dieta saudável que dê ênfase aos alimentos vegetais pode ser uma maneira eficaz de combater doenças crónicas. Também apreciei o facto de o filme abordar questões de justiça social como a poluição das fábricas de criação intensiva de porcos, que se encontram desproporcionalmente localizadas perto de comunidades de pessoas de cor com rendimentos baixos.
Gostava que o What the Health se tivesse limitado a este tipo de observações e que as sustentasse com um debate informado da evidência. Em vez disso, fez cherry picking da investigação, interpretou erradamente e expôs exageradamente os dados, destacou histórias dúbias de curas milagrosas, e focou-se em observações incorrectas sobre a ciência de nutrição. Os temas do What the Health são que:
- uma dieta vegana é a resposta para prevenir e tratar todas as doenças crónicas
- a carne, os lacticínios e os ovos (e as gorduras) são as causas de todas estas doenças
- e as organizações sem fins lucrativos não querem que você saiba porque são financiadas pela Big Food.
A maior parte da desinformação no filme deve-se simplesmente a uma compreensão fraca da ciência de nutrição e da investigação. Mas houve alguns momentos que me pareceram demasiadamente desonestos. Embora ele não o diga directamente, o realizador Kip Andersen dá a impressão de que está a explorar a dieta vegana pela primeira vez. Ele diz “Como tantas pessoas, eu estava à procura de uma desculpa para não mudar a minha dieta.” Achei difícil de acreditar que ele não fosse vegano enquanto fazia este filme. E a outra metade do duo de realizadores, Keegan Kuhn, declarou que é vegano há décadas. Portanto, tudo isto deu uma impressão bastante dissimulada.
O filme também recorre a um óbvio duplo padrão. Chama a atenção para os conflitos de interesse entre as organizações sem fins lucrativos nacionais, sem reconhecer que a maioria dos médicos entrevistados no filme também tem conflitos de interesse. Alguns são activistas pelos direitos dos animais e alguns construíram as suas reputações e meios de subsistência em torno da nutrição vegana. Embora isso não seja certamente uma razão para desacreditar tudo o que eles dizem, parcialidade é parcialidade, e a objectividade é para os dois lados. Estes médicos deviam ser expostos ao mesmo nível de escrutínio que as organizações que recebem dinheiro da indústria alimentar.
A INVESTIGAÇÃO É COMPLEXA E CONTRADITÓRIA
Quando o Kip aborda organizações de saúde sem fins lucrativos para entrevistas, ele descobre que ninguém quer falar com ele. As primeiras pessoas a atenderem o telefone não conseguem responder às suas perguntas sobre dieta e saúde. Não sei por que motivo ele acha isto surpreendente. Eles são assistentes administrativos, e não profissionais de saúde.
Mas os executivos na maioria destas organizações também não lhe concediam uma entrevista. Isto foi interpretado como uma evasão em resposta ao esforço de Kip para ter um debate importante sobre dieta e saúde. E talvez até algum tipo de conspiração. “Por que motivo um representante da American Cancer Society haveria de não querer falar sobre isto?”, interroga-se ele.
Bem, eu posso-lhe dizer porquê. Estes profissionais atarefados não têm tempo nem paciência para se lançarem num debate sobre nutrição com alguém que não compreende o quão vasta, complexa, contraditória, e confusa é a investigação. Houve várias ocasiões em que não respondi a pessoas que querem brandir uma cópia de The China Study na minha cara enquanto põem em causa as minhas asserções sobre o óleo, a proteína ou a vitamina B12. Eu consigo perceber bastante rápido quando um debate apenas me irá fazer perder tempo, e quando um inquiridor é hostil em relação a considerar imparcialmente outros pontos de vista. Suponho que o director da Associação Americana de Cancro também reconhece isto.
Além disso, quando os jornalistas marcam entrevistas para falarem sobre investigação nutricional, eles tipicamente fornecem com antecedência informação sobre os estudos acerca dos quais eles querem falar. É por isso que eu compartilhei os sentimentos do administrador médico chefe da Associação Americana de Diabetes, que não quis debater investigação sobre dieta. É por isso que eu compreendi por que motivo ninguém da organização Susan G Komen quis defender o facto de não haver nenhum aviso sobre os lacticínios e o cancro da mama no website deles.
O pessoal na Susan G Komen não é desconhecedor da relação dos produtos lácteos com o cancro da mama. O website deles nota que os produtos lácteos gordos, mas não os magros, podem aumentar o risco e que a investigação é contraditória. A documentação reunida no website do What the Health diz sensivelmente a mesma coisa. Por exemplo, eles citam um artigo científico que diz o seguinte: “No todo, a evidência para um aumento no risco de cancro da mama através do consumo de leite de vaca e de produtos lácteos é vaga e parcialmente contraditória e equívoca.”
Esta também é a conclusão do relatório do Instituto Americano para Investigação sobre Cancro [American Institute for Cancer Research] (AICR), uma das mais importantes autoridades no tema da dieta e cancro (e um grupo que estimula uma dieta de base vegetal). Na revisão que fizeram de toda a investigação sobre o assunto, eles dizem que é “provável” (mas não “convincente”) que os lacticínios aumentem o risco de cancro da próstata, mas que o consumo de lacticínios provavelmente protege contra o cancro do cólon. Esta é a posição da ciência neste momento, e não pode ser contradita por um estudo acompanhado por entrevistas de pessoas que não são especialistas na situação actual da investigação da dieta e do cancro.
Os realizadores também se metem em sarilhos quando tentam decifrar estudos individuais. Por exemplo, eles, por engano, afirmam que a análise da Organização Mundial de Saúde sobre carne processada e o risco de cancro é baseada em 800 estudos. Mas esta tratava-se de uma meta-análise, o que significa que começou por identificar estudos potencialmente relevantes através de uma busca por palavras-chave. Neste caso, foram encontrados 800. Mas apenas sete destes estudos foram efectivamente qualificados para e incluídos na meta-análise. Portanto, as conclusões deles são baseadas em sete estudos, e não 800 – uma grande diferença e uma grade gafe da parte dos realizadores.
E embora a carne processada não seja exactamente um alimento saudável (e a Sociedade Americana de Cancro, a Fundação Susan G Komen e a AICR aconselham as pessoas a limitar o seu consumo) comer cachorros quentes não é tão perigoso como fumar. Os realizadores asseveram que as duas coisas são igualmente perigosas porque são ambas “carcinogéneos do tipo 1”. Porém, não é isso que significa este tipo de classificação. Não tem nada a ver com grau de risco. É este tipo de falta de entendimento constante que alimenta tanta da hipérbole no filme.
“TODA A GENTE OBTÉM PROTEÍNA SUFICIENTE” E OUTROS MITOS DA NUTRIÇÃO VEGANA
O What the Health contém entrevistas exaustivas com o elenco habitual de médicos veganos celebridade (e, a propósito, por que motivo é que os mesmos médicos aparecem repetidamente em filmes de saúde de orientação vegana? Não dá para acreditar que apenas existam dez profissionais de saúde em todo o mundo que entendam a relação da dieta com as doenças crónicas). Isto resulta numa salgalhada de informação, incluindo alguma que é descaradamente incorrecta. É-nos dito, por exemplo, que os hidratos de carbono não se podem transformar em gordura (não é verdade) e que apenas as plantas conseguem produzir proteínas (isto é uma meia verdade; o corpo humano produz proteínas durante todo o dia, mas algumas matérias-primas para isto têm origem nas plantas).
Há também a observação obrigatória de um médico que nunca viu “um paciente com deficiência de proteína.” Isto diz respeito, claro, a uma deficiência de proteína extrema, como kwashiorkor. É uma distracção (e irresponsável, por sinal) do facto de que algumas pessoas, especialmente mais velhas, obtém muito pouca proteína para uma saúde ideal, e de que os veganos podem ter necessidades proteicas mais elevadas do que os consumidores de carne. Este mesmo médico alvitra em seguida que você poderá obter toda a proteína e aminoácidos essenciais de que necessita através de 2000 calorias de arroz. Isso poderá levá-lo a aproximar-se razoavelmente das necessidades totais de proteína, mas fica bastante aquém da quantidade necessária do aminoácido essencial lisina. Este é o tipo de menosprezo descontraído em relação a problemas reais de nutrição que pode preparar os veganos para o falhanço.
Também obrigatório em qualquer filme sobre alimentação de base vegetal é o gráfico a mostrar que as populações que consomem a maior quantidade de lacticínios a nível mundial têm as taxas mais altas de fracturas da anca. Isto poderá ser verdade. Mas sabe como o Dr. Neal Barnard revira os olhos neste filme quando lhe perguntam sobre o açúcar e a diabetes? Isso sou eu quando as pessoas começam a falar sobre a ligação entre as taxas de fracturas da anca e os lacticínios ou o consumo de proteína entre os países. Entre os especialistas em nutrição, estes tipos de comparação não têm quase peso nenhum. Isto porque há tantos factores confundidores que afectam as comparações. Por exemplo, os países com um consumo elevado de lacticínios também tendem a ter invernos com mais gelo. Isto aumenta significativamente o risco de quedas, o que por sua vez aumenta o risco de uma fractura da anca. De facto, o artigo que o What the Health cita para sustentar a ligação dos lacticínios às fracturas da anca nem sequer menciona os lacticínios. Diz que os factores responsáveis pelas diferenças nas taxas de fracturas são “a demografia populacional (com os indivíduos de maior idade a viverem em países com taxas de incidência mais elevadas) e a influência da etnia, da latitude e de factores ambientais.”
Assim, o What the Health deixa-nos com uma perspectiva errónea sobre a investigação nutricional, que minimiza a importância tanto da proteína como do cálcio para a saúde óssea. Isto nega aos veganos e aos veganos potenciais o tipo de informação que eles precisam para efectivamente se manterem saudáveis.
O MILAGRE DE UMA DIETA DE BASE VEGETAL
As afirmações exageradas e enganadoras acerca dos produtos animais e a saúde têm a intenção de resultarem no argumento de que você tem de ser vegano se quer ser saudável. Nós ouvimos, por exemplo, que não há evidência de que consumir produtos animais em moderação pode ajudar a recuperar de doença cardíaca. Há sim. Há pelo menos tanta evidência de que dietas de base vegetal (mas não veganas) podem reverter a doença cardíaca como há evidência que indica que as dietas veganas podem reverter a doença cardíaca.
E, finalmente, há as curas miraculosas. O filme diz-nos que uma dieta de base vegetal pode tratar lúpus, esclerose múltipla e osteoporose. (Eu adorava ver evidência real para qualquer uma destas afirmações.) A seguir são-nos mostrados exemplos da vida real de recuperações espantosas de doenças. Uma mulher foi diagnosticada com osteoartrite bilateral e tem duas angioplastias da anca marcadas porque, como ela o descreve, o osso está a roçar no osso. Isto significa que a cartilagem que protege as articulações da anca se desgastou. Você não consegue simplesmente produzir uma nova porção de cartilagem em duas semanas através da alteração da sua dieta. Nem há evidência de que uma dieta vegana saudável irá reverter o cancro da tiróide, como é pretendido no filme. E eu espero que a mulher que deixou de tomar antidepressivos o tenha feito sob supervisão médica rigorosa. Esse tempo não é suficiente para fazer o desmame desses medicamentos (o que, de certo modo, me faz duvidar da sua história). E dar a entender que as pessoas podem parar abruptamente de tomar os seus antidepressivos quando se tornam veganas é irresponsável e perigoso.
O próprio Kip diz que depois de ter mudado a sua dieta, “em poucos dias eu conseguia sentir o meu sangue a correr através das minhas veias com uma nova vitalidade.” Recordou-me imediatamente de Lierre Keith, ex-vegana e autora de The Vegetarian Myth. Ela diz isto quando comeu uma dentada de atum após muitos anos de veganismo: “Eu conseguia sentir cada célula no meu corpo – literalmente cada célula – a pulsar. E, finalmente, finalmente a ser alimentada.”
Tenho a certeza absoluta de que você não consegue sentir cada uma das suas células a pulsar e também não acredito que você possa sentir o seu sangue a correr através das suas veias. Isto são testemunhos sem relevância que as pessoas dão sobre todas as dietas que existem à face da Terra. (Não nos conseguimos sequer manter a um padrão mais alto do que as afirmações disparatadas dos ex-veganos?)
Há tanto mais para deplorar acerca deste filme. O alarmismo sobre os OGM e sobre a dieta e o autismo. O envergonhamento em relação ao corpo. E, claro, a insistência desactualizada (em cerca de 40 anos) de que a gordura alimentar é má.
ESTE FILME É BOM ACTIVISMO PELOS ANIMAIS?
Apesar de todos os problemas do What the Health, eu gostei do que o Kip disse no final – que ele sabia que comer um pouco de alimento animal não iria prejudicar a sua saúde (o que, a propósito, está em contradição com o que os médicos disseram no filme), mas que, em boa consciência, não conseguia comer nem que fosse um pequeno alimento de base animal.
Saber das agonias sofridas pelos animais criados para consumo, e do prejuízo que o gado causa ao ambiente, significa que a decisão mais responsável é evitar totalmente esses alimentos. Essa também é a minha perspectiva. A maior parte dos especialistas em saúde pública recomenda uma dieta que dá ênfase aos alimentos vegetais e limita os alimentos animais. Mas, a não ser que você pode introduza as preocupações em relação aos animais, ao ambiente, e à justiça social, você não pode argumentar que a dieta vegana é a única forma sensata de comer. É por isso que a base científica do What the Health estava condenada desde o princípio. Em vez de se focar nas razões indiscutíveis para se ser vegano, focou-se naquelas que são mais facilmente refutadas.
Eu tenho consciência de que alguns activistas acreditam que usar todos os meios possíveis para convencer as pessoas a parar de comer carne constitui um ganho para os animais. Mas, pondo de lado a questão filosófica de se os fins justificam os meios – isto é, se é correcto ser desonesto se isso salva animais – eu penso que há uma série de problemas com este argumento.
Em primeiro lugar, as pessoas mais susceptíveis de serem influenciadas por este filme têm uma grande probabilidade de, mais tarde, virem a ser influenciadas na direcção oposta por filosofias alimentares concorrentes. Não estou convencida de que este filme irá dar origem a uma grande população de veganos dedicados a longo prazo, sobretudo quando as pessoas descobrem que tornarem-se veganas não cumpre necessariamente todas as promessas que o What the Health faz.
Em segundo lugar, a credibilidade do movimento vegano é enfraquecida quando fazemos afirmações que são tão facilmente refutadas. Se somos apanhados a mentir ou a exagerar sobre os aspectos de saúde do veganismo, por que motivo é que alguém haveria de acreditar em nós quando tentamos falar do tratamento dos animais nas quintas, nos jardins zoológicos, e nos laboratórios de investigação?
Suponho que este filme também poderá fazer perder o interesse a um segmento significativo da população que reconhece a propaganda excessiva, a conspiração alarmista exagerada, e a ciência de má qualidade. Para muitos, é provável que reforce qualquer opinião negativa que já tenham dos veganos. Com tudo isto em mente, por que motivo haveríamos de querer promover um filme que faz a nossa comunidade parecer uma fonte duvidosa de informação? Eu não consigo considerar que quando construímos o nosso activismo à volta de hipérboles, ciência da treta, teorias da conspiração e desonestidade flagrante, isso seja de alguma forma benéfico para os nossos esforços pelos animais.
O What the Health pode parecer superficialmente bom activismo pelos animais. Contudo, eu desconfio que a longo prazo, este tipo de abordagem entrava os nossos esforços e abranda os nossos progressos a favor dos direitos dos animais.
Tradução: Nuno Metello
Artigo traduzido com permissão da autora.