«SPEAKING TRUTH TO POWER» (DIZER A VERDADE AO PODER)

COMPREENDER A NARRATIVA DOMINANTE DE CONSUMO DE ANIMAIS PARA O EMPODERAMENTO VEGANO E A TRANSFORMAÇÃO SOCIAL

Como veganos, o nosso objectivo não é simplesmente levar as pessoas a deixar de comer animais; nós queremos provocar uma mudança revolucionária na consciência social para transformar uma cultura de violência e opressão numa de não-violência e libertação. O nosso objectivo é catalisar uma revolução para mudar o curso da História.

A História não é moldada por armas, nem por tiranos, nem por rebeliões. A História é moldada por histórias. Sob cada opressão e cada revolução, há narrativas que as guiam: não podemos invadir e pegar em armas contra o outro sem, primeiro, acreditarmos na história de que o outro é o nosso inimigo que tem de ser conquistado; assim como não nos podemos unir em protesto contra invasões violentas, sem acreditar na história de que a guerra é injusta.

 As narrativas dominantes são as histórias contadas pela cultura dominante. Elas definem a nossa realidade e guiam as nossas vidas como uma mão invisível. E quando a cultura dominante é opressiva, então as suas narrativas também o são. Tais narrativas são ficções construídas para iludirem as pessoas, levando-as a apoiar o modo de vida dominante, embora esse modo de vida seja contrário àquele que as pessoas de outra forma apoiariam, e para silenciarem as vozes das pessoas que procuram dizer a verdade. Portanto, a mudança social é possibilitada por aqueles que desafiam as narrativas dominantes, substituindo ficções por factos, testemunhando e falando contra a opressão. As revoluções que mudam o curso da História são possíveis graças àqueles que dizem a verdade ao Poder.

Aprendendo com a História: Um caso de estudo do Feminismo

Só quando examinamos a História podemos esperar mudar o seu curso, e há muito para aprender com os revolucionários que nos precederam. O movimento feminista do século XX oferece-nos um exemplo particularmente útil.

Ao longo de grande parte do século XX, as mulheres foram consideradas inferiores aos homens e, por isso, destinadas a uma vida de servidão doméstica. Muitas mulheres viveram no isolamento e no tédio, excluídas da vibrante vida social à sua volta, e, no entanto, submeteram-se voluntariamente ao seu destino.

Então, nos anos 60, algo aconteceu. As mulheres começaram a falar umas com as outras sobre as suas experiências e, com o tempo, essas conversas levaram à criação de grupos formais de discussão. E à medida que cada vez mais mulheres partilhavam as suas histórias, descobriram que muitas delas passavam pelos mesmos problemas, como, por exemplo, serem maltratadas física e verbalmente pelos seus maridos. Assim, as mulheres perceberam que não eram inferiores, mas sim oprimidas. Partilhar as suas histórias deu às mulheres o poder de falarem contra a opressão de que eram alvo – dizer a verdade ao Poder – e ajudou-as a lançar o moderno movimento de libertação das mulheres, um movimento global que alterou o curso da História.

Nesta história, há lições importantes para aqueles de nós que procuram uma transformação social:

As histórias moldam as nossas vidas e o nosso mundo para melhor ou pior.

Quando as mulheres acreditavam nas histórias contadas pela cultura sexista dominante – quando elas olhavam para o mundo através dos olhos (sexistas) masculinos, elas acreditavam que as suas deficiências pessoais, e não as estruturas externas de poder, eram as culpadas do seu baixo estatuto social.

As histórias podem ser ficção ou facto.

A história dominante da cultura sexista – de que as mulheres são inferiores porque são excessivamente emocionais, fracas e irracionais – baseou-se em flagrantes distorções da verdade sobre a real natureza e experiência das mulheres. Era uma ficção. As histórias verdadeiras, por outro lado, reflectem a verdade autêntica da nossa experiência.

Histórias largamente divulgadas reflectem (e reforçam) um largamente difundido sistema de crenças, ou uma ideologia.

A história de que as mulheres eram inferiores aos homens não surgiu do nada; ela reflectiu a muito difundida ideologia do sexismo. E quanto mais tanto homens como mulheres acreditaram nesta ficção, mais reforçaram o sistema sexista, desempenhando, e, assim, confirmando os estereótipos de homens dominantes e mulheres submissas.

Quando mudamos as nossas histórias, mudamos as nossas vidas e o nosso mundo.

Enquanto veganos, em geral estamos conscientes das ficções tecidas pela cultura dominante de consumo de animais; a nossa advocacia está vocacionada para oferecer histórias verdadeiras alternativas. Mas há algumas histórias dominantes que muitos veganos ainda desconhecem, e essas histórias podem levar-nos a sentirmo-nos “desempoderados” e a desesperar, e podem minar seriamente a nossa advocacia. No entanto, quando tomamos consciência dessas histórias, podemos reescrevê-las e transformar o nosso desespero em inspiração e empoderar-nos a nós e ao nosso movimento.

O CARNISMO E A NARRATIVA DOMINANTE DE CONSUMO DE ANIMAIS

Para compreendermos a narrativa dominante de consumo de animais, precisamos de compreender a ideologia que gera as suas várias histórias. A maior parte das pessoas, tanto veganas como não-veganas, ainda acredita que não há uma ideologia da cultura dominante de consumo de animais. Tendemos a presumir que só os veganos (e os vegetarianos) levam as suas crenças para a mesa de jantar. Mas quando comer animais não é uma necessidade para a sobrevivência, é uma escolha – e as escolhas provêm sempre de crenças.

O carnismo é a ideologia invisível que condiciona as pessoas a comer animais. Já escrevi extensivamente sobre o carnismo noutro local; aqui, eu vou fazer um breve resumo das suas características principais e de como elas se relacionam com as suas narrativas. O carnismo é uma ideologia dominante: é invisível e é entretecido na própria estrutura da sociedade, construindo normas, leis, crenças, comportamentos, etc. e tornando-se interiorizado, moldando a própria forma como pensamos e sentimos acerca do consumo de animais. Por outras palavras, olhamos para o mundo através da lente do carnismo como sociedade e como indivíduos. O carnismo também é uma ideologia opressiva: o consumo de animais está organizado à volta de um grupo poderoso e socialmente privilegiado (humanos) que usa outro grupo (animais de pecuária) para os seus próprios fins. Resumindo: o carnismo é um sistema de opressão.

Contudo, a maior parte das pessoas que participa no carnismo – que comem animais – preocupa-se com os animais e não quer que eles sofram. Assim, o carnismo, tal como outras ideologias opressivas, tem que usar um conjunto de mecanismos de defesa sociais e psicológicos que habilita as pessoas a participar em práticas desumanas sem compreenderem completamente o que estão a fazer. Resumindo, o carnismo ensina-nos como não pensar e não sentir quando se trata de comer animais. Estas defesas carnistas criam e mantêm as histórias que suportam a ideologia num ciclo sem fim:   

Ideologia → defesas (contar histórias) → distorcer percepções → bloquear sentimentos → habilitar comportamentos → reforçar a ideologia

Por exemplo:

Carnismo → objectificação (“os animais são coisas”) → percepcionar um peru como uma coisa e não como alguém → adormecer emoções → comer perus → reforçar o carnismo

É claro que há um modo muito mais simples de descrever as ficções promulgadas pela cultura dominante: a propaganda.

DEFESAS CARNISTAS: PRIMÁRIA E SECUNDÁRIA

Há dois tipos de defesas carnistas: a primária e a secundária. Todas as defesas existem para distorcer a realidade, para promover a ficção como um facto.

Em geral, as defesas primárias são “pró-carnismo”; elas existem para validar o carnismo. As histórias que contam são que “comer animais é a coisa certa a fazer” – que, por exemplo, “o leite faz bem”. Por outro lado, as defesas secundárias são ”anti-veganismo”; existem para invalidar o veganismo. As histórias que elas contam são que “não comer animais é a coisa errada” – que, por exemplo, a proteína vegetal é inferior à proteína animal. As defesas primárias distorcem a verdade sobre os animais de pecuária (os porcos são estúpidos, preguiçosos e sujos), e os proponentes do carnismo (“as pessoas precisam de comer animais”) e as defesas secundárias distorcem a verdade sobre veganos e veganismo (”os veganos não são saudáveis”).

Defesas primárias e narrativas: ficções pró-carnismo

negação é a principal defesa do carnismo; se, em primeiro lugar, negamos que há um problema, então, não temos de fazer nada em relação a isso. A negação é em grande parte expressa através da invisibilidade, e é a principal forma pela qual o carnismo permanece invisível e continua anónimo. Se não o nomearmos, nem sequer podemos pensar nele ou questioná-lo; portanto, comer animais parece ser um dado adquirido, mais do que uma escolha. E claro que as vítimas do sistema são mantidas longe da vista e, por isso, longe da consciência pública. As histórias que a negação primária conta são que “não há um sistema de crenças” e que “não há problema”.

Outra defesa carnista é a justificação. A justificação conta muitas histórias, muitos mitos que caem perante os Três N da Justificação: “comer animais é Normal, Natural e Necessário”. Não surpreendentemente, estes mesmos mitos têm sido usados para justificar práticas opressivas através da história humana, da escravatura à supremacia heterossexual.

E, finalmente, o carnismo usa um conjunto de defesas que distorcem as nossas percepções dos animais de pecuária e da sua carne e excreções. Deste modo, vemos os animais de pecuária como objectos (“frangos são mercadoria”) e abstracções (“um porco é um porco e todos os porcos são iguais”), e colocamos os animais em categorias rígidas nas nossas mentes para podermos guardar sentimentos muito diferentes e implementar comportamentos muito diferentes relativamente a espécies diferentes (“os cães são amigos e família; as vacas são comida”).

Muitos veganos têm uma compreensão intuitiva das defesas carnistas primárias. Reconhecemos que os outros olham para o mundo através da lente do carnismo, de modo que muito do nosso activismo se concentra no desafio às ficções carnistas, contando a verdade. Consideremos, por exemplo, o FARM´s 10 Billion Lives Tour (tornando visível o invisível), os esforços de profissionais médicos para demonstrar que comer animais não é natural nem necessário para a saúde (desmontando dois dos N da Justificação), a campanha da Mercy for Animals questionando porque gostamos de alguns animais mas comemos outros (contestando categorias), e o Farm Sanctuary’s Someone, Not Something Project (validando a individualidade dos animais de pecuária).

Defesas secundárias e narrativas: reacção e as vítimas veganas do carnismo

Embora os veganos tenham frequentemente uma ideia de como as defesas primárias influenciam os não-veganos, muitos veganos não se apercebem de que também nós olhamos para o mundo através da lente do carnismo – de dentro da esfera das defesas secundárias. Para compreender esta questão, tente visualizar as defesas carnistas em círculos concêntricos, com as defesas primárias no centro, rodeadas por um círculo de defesas secundárias. Assim, apesar de nós veganos termos, em grande medida, saído da esfera de defesas primárias, permanecemos dentro do sistema. Por outras palavras, acreditamos, frequentemente, em algumas ou em todas as histórias contadas pelas defesas secundárias.

As defesas carnistas secundárias existem para invalidar as histórias que desafiam o carnismo. Elas atingem esse propósito invalidando os veganos, a ideologia e a prática veganas e o movimento vegano. E as defesas secundárias são uma parte de uma reacção (backlash) contra o veganismo, um backlash é uma reacção da cultura dominante, quando o seu poder é ameaçado (por exemplo, quando o movimento de libertação das mulheres começou a obter um apoio generalizado, o termo “feminista”, em tempos orgulhosamente envergado por muitos homens e mulheres, da mesma forma, foi transformado num insulto pela cultura sexista dominante. Por conseguinte, as defesas secundárias evoluem e intensificam-se à medida que um movimento evolui e se intensifica e são um sinal do sucesso do movimento, não do seu fracasso.

Projecção: matando o mensageiro

Projecção existe para invalidar os veganos e, deste modo, a nossa mensagem. A Projecção conta a história de que “os veganos estão errados”. Se matarmos o mensageiro, não temos de levar a sério as implicações da sua mensagem.

Um tipo de projecção tem a ver com as qualidades da cultura carnista. Os veganos podem ser retratados como possuindo as indesejáveis qualidades da cultura; por isso, por exemplo, somos vistos como “tendenciosos” e “extremistas”, quando desafiamos os vieses e as práticas extremas da cultura dominante, e somos acusados de “propagandismo”, quando desafiamos a propaganda carnista. Ou podemos ser retratados como “tendo falta das qualidades desejáveis” da cultura, sendo, por exemplo, vistos como “excessivamente emocionais” e “sensacionalistas”, quando desafiamos a apatia e o entorpecimento da cultura dominante.

Quando não reconhecemos estas projecções pelo que elas são, podemos acreditar nas mensagens negativas que ouvimos sobre nós próprios e podemos questionar a verdade das nossas próprias histórias. Podemos acreditar, por exemplo, no mito de que as nossas emoções são excessivas, em vez de reconhecermos que a nossa reacção emocional – a nossa tristeza, dor, raiva, etc. – à atrocidade que é a pecuária intensiva é, de facto, saudável, adequada e legítima. Quando se trata de comer animais, o mundo precisa de mais emoção, não de menos. Outra consequência do não reconhecimento destas projecções carnistas é que podemos acabar por projectar de volta contra os não veganos e ficarmos enredados numa batalha de projecções em vez de nos envolvermos num diálogo produtivo sobre a verdadeira questão.

Outro tipo de projecção é aquele reduz os veganos a estereótipos superficiais. Se, por exemplo, expressamos a nossa raiva perante a injustiça social que é o carnismo, somos misantropos militantes; se advogamos a paz e a compaixão, somos os amantes do tofu e os hippies que abraçam árvores (claro que não há nada de mal em ser-se um hippie; mas  um problema em ser reduzido a um estereótipo unidimensional). Quando nós não reconhecemos essas projecções podemos acabar por desempenhá-las numa profecia auto-realizável, confirmando as histórias distorcidas da cultura carnista.

A cultura carnista também projecta muitas vezes nos veganos uma imagem de omnipotência, sugerindo que só temos um direito à nossa ideologia se conseguirmos viver de acordo com um ideal impossível. Assim, por exemplo, espera-se que sejamos modelos de saúde: não consigo contar o número de veganos que me disseram que nunca deixam que não-veganos saibam quando estão doentes, por medo de que a sua doença seja usada para desacreditar o seu veganismo. Ou espera-se que sejamos modelos de virtude, com a consistência moral de Buda. Somos hipócritas se vestimos uma camisola de lã usada… mas somos extremistas se não o fizermos. Também se espera que sejamos especialistas em tudo: em economia agrícola, em cultivo biológico, vegano e hidropónico de cogumelos, em física quântica. É como se não tivéssemos o direito de advogar o veganismo, se não tivéssemos todas as soluções para o carnismo. E quando, claro, não vivemos de acordo com essas projecções, isso torna-se uma desculpa para invalidar tudo o que representamos. Que pressão sobre nós! Acabamos tokenizados, tratados como o vegano emblemático, o embaixador de todo o movimento.

Se acreditarmos na história fictícia de que podemos e devemos ser perfeitos e de que somos os únicos responsáveis pelo sucesso ou pelo fracasso do movimento, então, quando não tornamos veganos todos à nossa volta, podemos sentir que falhámos com os animais, que somos responsáveis pelo sofrimento dos animais; nas nossas mentes veganas, tornamo-nos assassinos dos animais. Olha quem fala de inversão de papéis! É assim que as defesas secundárias funcionam: invertem o problema do carnismo e culpam disso os veganos. Às vezes, no entanto, os veganos reagem a esta projecção de omnipotência acreditando que são, de facto, todo-poderosos, ou que a sua marca específica de veganismo é o ideal perfeito. E passam para outros veganos a ideia de que estes são imperfeitos e estão “errados.” Tal integridade leva, com frequência, ao fundamentalismo e à rigidez ideológica, um problema que atormenta os activistas de muitos movimentos sociais.

Uma projecção carnista final é a do vegano insalubre (pouco saudável). Felizmente, a imagem do vegano doente e magricela está em rápido declínio. Contudo, ainda não é raro um psicólogo presumir que o veganismo de uma mulher jovem é reflexo de um distúrbio alimentar. Considerar que aqueles que desafiam o status quo sofrem de uma patologia, tem sido um método comum de manutenção de sistemas opressivos através da História; por exemplo, antes da abolição da escravatura humana nos EUA, os escravos que tentavam fugir eram diagnosticados com a doença mental drapetomania.

Justificação secundária: neocarnismo

Enquanto a justificação primária conta as histórias de que comer animais é normal, natural e necessário, a justificação secundária conta as histórias de que não comer animais é anormal, não natural e desnecessário. A justificação secundária é a defesa que, ironicamente, põe os veganos na defensiva, já que coloca o ónus da verdade sobre nós. Os veganos vêem-se, com frequência, na posição de terem que justificar porque não comem animais, em vez de os não-veganos explicarem porque o fazem.

Curiosamente, cada uma das justificações secundárias se transformou numa ideologia inteiramente nova, à qual me refiro como neocarnismo. Acredito que, graças ao trabalho incansável dos advogados do veganismo e ao advento da Internet, a negação (a principal defesa do carnismo) foi desestabilizada. Hoje, muitas pessoas, pelo menos, já não são capazes de negar as mais graves práticas da pecuária intensiva. Então, a justificação assumiu um papel mais importante na manutenção do sistema. O aparecimento do neocarnismo (p. ex., “carne feliz,” “carne local ou sustentável”), sobre o qual já escrevi noutro local, frustra os veganos, mas é, de facto, um sinal de progresso.

Negação secundária: injustiça carnista e opressão vegana

E, finalmente, voltamos ao ponto de partida da negação. A negação primária, como já foi referido, conta a história de que “não há um sistema de crenças.” Porém, a negação secundária vai mais longe. Porque se acreditamos que as pessoas que comem animais actuam fora de um sistema de crenças – em particular, de um sistema de crenças dominante – então acreditamos que não há um grupo (“maioritário”) dominante e, portanto, não há um grupo (“minoritário”) subordinado [i]. Desta forma, uma história contada pela negação secundária é a de que “os veganos não são um grupo ideológico minoritário” [ii].

Quando os veganos não reconhecem que somos uma minoria ideológica, podemos acabar por aceitar e até interiorizar o preconceito carnista. Por exemplo, milhares de veganos com os quais falei contaram-me como são gozados (ou então, tratados de forma hostil) sem outro motivo que não o facto de serem veganos – que pertencem a um grupo social minoritário – o que, por definição, é discriminação. E estes veganos sentem-se incapazes de se defenderem. Ou eles se defendem a si próprios e as suas crenças e arriscam-se a, por exemplo, ser acusados de falta de sentido de humor, ou forçam-se a rir da “piada”, participando, desta maneira, na sua própria degradação. Negar que os veganos são minorias ideológicas é um modo poderoso de silenciar aqueles de nós que contestam as histórias carnistas. Assim, quando identificamos a negação secundária pelo que ela é, somos mais capazes de nos defendermos e de educarmos os não veganos, muitos dos quais, sem dúvida, ignoram completamente os seus preconceitos carnistas.

Enquanto minorias ideológicas, os veganos também são desindividualizados pela cultura dominante, um fenómeno vivido pelos membros de todos os grupos não dominantes. Por outras palavras, os veganos são vistos como um grupo homogéneo (“os veganos são todos iguais”) em vez de indivíduos distintos. Ficamos reduzidos a nada para além da nossa ideologia. E se acreditarmos nesta história de que somos e devemos ser homogéneos, então, vemos as nossas diferenças como fraquezas e não como os pontos fortes que são. A verdade é que os veganos não são menos diversos do que os não-veganos, nem devemos ser.

Outra história que a negação secundária conta é que “não há opressão.” Se acreditarmos que não há um sistema de crenças e que não há opressão, então também acreditamos que “não há um sistema de opressão”, que comer animais é meramente uma questão de ética pessoal – uma escolha pessoal – em vez do inevitável resultado final de um profundamente enraizado ismo (imaginem acreditar que ter escravos africanos não tinha nada a ver com racismo!). Desta forma, qualquer tentativa para reduzir ou eliminar a opressão é vista como uma violação da “liberdade de escolha” de cada um. E estas histórias levam-nos a acreditar noutra história, a de que “comer animais não é uma questão de justiça social” e, portanto, que “o movimento vegano não é um movimento de justiça social genuíno”. Quando tanto veganos como não-veganos acreditam em tais ficções, podemos deixar de ver que o movimento vegano faz parte de uma longa tradição de movimentos sociais que mudaram o mundo. E o movimento vegano permanece desligado dos outros movimentos sociais com os quais está naturalmente alinhado e aos quais deve estar unido, se esperamos provocar o tipo de transformação revolucionária generalizada para a qual estamos todos a trabalhar.

Quando acreditamos que não há um sistema de opressão – não há violência generalizada sistemática – então, também acreditamos no mito de que “a pecuária intensiva não é uma atrocidade”, um trauma em massa. E, por isso, deixamos de ver os papéis que todos desempenhamos na traumatização; não reconhecemos os animais como vítimas, a agro-pecuária como agente do crime e os veganos como testemunhas. Muito poderia ser escrito sobre o impacto do “trauma induzido pelo carnismo”, mas é particularmente importante que os veganos estejam cientes deste ponto: enquanto testemunhas também somos vítimas. O Stress Traumático Secundário (STS) é virtualmente idêntico ao Sress Pós-Traumático (SPT) exceptuando o facto de ser causado pelo testemunho – em vez de se ser uma vítima directa – do trauma. Há muitos veganos que, como consequência de testemunharem a violência do carnismo, sofrem de depressão, ansiedade, pensamentos intrusivos, irritabilidade, pesadelos, perda de fé neles próprios e nos outros, culpa do sobrevivente (culpa por não fazerem o “suficiente” para ajudar animais), esgotamento, etc. – todos potenciais sintomas de STS. Contudo, a grande maioria dos veganos – e dos psicólogos que eles possam procurar – não reconhece estes sintomas como inevitáveis e legítimas reacções ao trauma, não estando, por isso, em condições de tratá-los adequadamente.

Às vezes, a negação secundária conta a história de que “não há um movimento vegano”. Ou então, obscurece o verdadeiro poder e o alcance do movimento, contando a história de que “o movimento vegano é fraco e ineficaz”, diminuindo, deste modo, a percepção individual dos veganos do seu poder para fazer a diferença (assim, a negação secundária é como a negação primária, na medida em que torna invisíveis os factos que enfraqueceriam o sistema). Os veganos podem acabar por sentir que o problema é tão grande, e o seu impacto tão insignificante que podem ficar desmoralizados por aquilo que parece um desafio impossível.

As histórias das defesas carnistas secundárias podem fazer com que os veganos se sintam desligados uns dos outros e do movimento. Elas podem fazer-nos sentir isolados, silenciados, confusos, frustrados e desempoderados. Destroem a solidariedade e corrompem a esperança e, como tal, são ferramentas poderosas para manter o carnismo. E enquanto permanecermos inconscientes dos mitos das defesas carnistas secundárias, vamos, provavelmente, perpetuá-los em vez de os desacreditarmos; praticamos um veganismo reactivo em vez de proactivo.

VEGANISMO REACTIVO: A DINÂMICA DA OPRESSÃO E DO PRIVILÉGIO INTERIORIZADOS

Quando somos reactivos, olhamos para o mundo através da lente das defesas carnistas e reagimos às suas histórias. Quando os membros de grupos minoritários acreditam nas histórias contadas sobre eles pela cultura dominante, eles internalizaram a opressão dessa cultura. E as histórias da cultura dominante são invariavelmente de que as necessidades e experiências do grupo minoritário são menos válidas e menos importantes do que as do grupo maioritário. Por exemplo, se, num jantar de família, um vegano pedir que o queijo esteja separado da salada ou que o puré de batata não tenha manteiga, esta necessidade – que é fácil de suprir e que faria uma diferença significativa para o vegano – é vista, muitas vezes, como muito menos importante do que a “necessidade” de ter uma refeição tradicional.

Quando os membros de grupos maioritários acreditam na mensagem da cultura dominante – que as suas necessidades e experiências são mais válidas do que as do grupo minoritário – eles internalizaram o privilégio que lhes foi concedido pela cultura. Esta mentalidade está reflectida muitas vezes num sentido de direito (entitlement), e pode surgir uma raiva justificada quando as nossas necessidades não têm prioridade sobre as do outro. Por exemplo, muitos não-veganos podem sentir-se “controlados” quando convidados para jantar num restaurante que não serve animais, alegando que não há “nada” para comerem na ementa. E, no entanto, esses mesmos indivíduos podem, sem qualquer escrúpulo, tomar providências para que um vegano jante com eles numa churrascaria sem consultar o vegano ou sem considerar a inconveniência e a ofensa que tal situação pode causar.

Claro que a maior parte dos não-veganos não tem consciência do seu privilégio carnista; eles simplesmente absorveram e reproduzem as histórias fictícias da cultura carnista. E, paralelamente, a maioria dos veganos não tem consciência da sua opressão internalizada. Contudo, muitos veganos sentem, de certa forma, a contradição entre o que sabemos ser verdade (que temos o direito de ser vistos e tratados como iguais), e aquilo que aprendemos a acreditar que é verdadeiro (que as necessidades dos outros superam as nossas). Então, podemos dar connosco a pedir desculpa por “sermos inconvenientes” para os outros, enquanto, ao mesmo tempo, nos melindramos com o facto de pedirmos tais desculpas.

Vergonha e Grandiosidade

A opressão internalizada leva à vergonha, a sensação de ser “menos do que”. Sentimos vergonha quando olhamos para nós próprios através dos olhos dos outros e acreditamos na sua versão da realidade em detrimento da nossa (“As vossas necessidades/crenças/valores, etc. são menos válidos do que os meus/nossos”). A nossa vergonha pode impedir-nos de nos defendermos, quando, por exemplo, nos chamam “hipersensíveis” ou pode levar-nos a pedir desculpa por coisas de que não nos devíamos lamentar.

Às vezes, podemos reagir à nossa vergonha transformando-a no seu oposto, a grandiosidade, que é a sensação de ser “melhor do que”. Por conseguinte, nós recusamos olhar para nós próprios pelos olhos dos outros ou admitir qualquer informação que questione as nossas ideias actuais. Quando estamos num estado de grandiosidade, podemos acabar por envergonhar os outros, agindo como o espelho da cultura carnista. Por exemplo, podemos projectar estereótipos sobre os não-veganos (vendo-os como “devoradores de animais egoístas e apáticos”) ou, então, invalidando a sua experiência (Não vegano: “Adoro animais”. Vegano: “Não, não adoras. Tu come-los.”).

PARA ALÉM DAS FICÇÕES CARNISTAS: PRATICAR UM VEGANISMO PROACTIVO

A boa notícia é que quando reconhecemos as histórias carnistas, podemos mudar a nossa relação com elas. Podemos praticar um veganismo proactivo, em vez de reactivo. Quando praticamos um veganismo proactivo, resistimos às ficções carnistas e somos fiéis à verdade da nossa experiência sem invalidar os outros.

Praticar um veganismo proactivo significa que procuramos, falamos e vivemos a nossa verdade com integridade para connosco próprios e para com os outros. Assim, nós praticamos os três “C” de uma mente e um coração equilibrados: abordamos as situações com Curiosidade – uma mente aberta –, e Compaixão – um coração aberto. Buscamos a Clareza, olhando profundamente para dentro de nós próprios e ligando-nos àqueles em cuja integridade confiamos, para nos mantermos fiéis à nossa verdade autêntica, à nossa própria história. E cultivamos a Coragem para trazer os outros “C” para as nossas vidas e o nosso mundo. O veganismo proactivo é um veganismo corporizado. É a nossa filosofia, vivida nos nossos corpos, nas nossas vidas, minuto a minuto. É a prática dos “C” em relação a nós próprios , aos outros e ao nosso mundo, que nos permite perdoarmo-nos a nós mesmos e aos outros, quando, inevitavelmente, acabamos por nos envolver na dinâmica de um sistema universal no qual estamos enredados. Praticar um veganismo proactivo também ajuda a diminuir a raiva que atormenta tantos veganos, visto que isso exige que sejamos empáticos – e a empatia é um antídoto para a raiva. (Para conselhos práticos sobre como praticar os “C”, recomendo vivamente a leitura dos princípios da comunicação não violenta).

Quando reconhecemos as histórias carnistas, podemos transformar a nossa vergonha em orgulho, um pré-requisito para os activistas em todos os movimentos sociais: consideremos, por exemplo, o Black Pride, o Gay Pride e, agora, o Veggie Pride. O verdadeiro orgulho é o contrário da vergonha/grandiosidade; é não se sentir “menos do que” ou “melhor do que”; é o reconhecimento de que todos os indivíduos – veganos, não-veganos, animais – possuem igual valor inerente. E enquanto veganos, temos muito de que nos orgulharmos. Nós opomo-nos firmemente às pressões esmagadoras para nos sujeitarmos à cultura dominante, recusamos aceitar as ficções da ubíqua propaganda carnista e resistimos às incessantes seduções para adormecermos e seguirmos o caminho de menor resistência.

Em última análise, quando reconhecemos as ficções carnistas, não subestimamos nem sobrevalorizamos o seu poder. Como, uma vez, um homem poderoso – Hitler – disse: “Tornem a mentira grande, tornem-na simples, continuem a dizê-la e eles acabarão por acreditar nela”. E como um homem ainda mais poderoso – Gandhi – disse: “Ao longo da História, o caminho da verdade ganhou sempre. Houve tiranos e assassinos… mas, no fim, eles caem sempre. Pensem nisso – sempre.”.

E Gandhi tinha razão. De facto, a maior mentira carnista é, talvez, a história de que as pessoas não se importam – de que as pessoas comem animais, não porque os seus corações e as suas mentes foram manipulados por uma cultura que é antitética com os seus valores fundamentais e as forçou a agir contra os seus próprios interesses e os interesses dos outros, mas porque não se importam. Eu tive o privilégio de falar com milhares de não-veganos em todo o mundo, dando a minha apresentação do carnismo perante salas cheias e ovações em pé, e as histórias que ouvi de pessoas que assistiram são radicalmente diferentes das da cultura dominante. Aqui estão apenas algumas das inúmeras citações dos formulários de avaliação que recolho depois de uma apresentação:

“A minha vida mudou esta noite. Eu quebrei. O meu coração quebrou. Nunca mais comerei um pedaço de carne.” – Bellevue, WA

“Eu não era vegano antes, agora eu devo vir a ser… Você foi muito bem sucedida! Obrigado”” – Zagreb, Croácia

“Já não posso arranjar mais desculpas. Obrigada por tornar visível o invisível.” – Albuquerque, NM

“Os meus valores e a minha ideia de mim própria são incompatíveis com seguir um sistema [que nos ensina a] comer animais… Definitivamente, tenho de fazer algumas mudanças. Definitivamente.” – Maribor, Eslovénia

“Embora o filme do abate de animais quase me tenha feito vomitar… a mensagem geral tocou-me, sobre como todos nós estamos, realmente, sob uma espécie de “pressão de grupo”. Agora, tenho dúvidas sobre voltar a comer carne.” – Estocolmo, Suécia

“Eu vim a esta apresentação muito céptico e a pensar que podia sair sem alterações. Mas sinto-me… sinto-me extremamente consciente e mudado.” – São Francisco, CA

Portanto, apesar daquilo em que as narrativas carnistas nos fariam acreditar, há razões para termos muita esperança. A verdade é que o movimento vegano está a crescer exponencialmente, numa miríade de países à volta do mundo: Como veganos, somos uma parte de algo muito maior do que o nosso eu individual; somos uma parte de um movimento social que acredito que, um dia, será olhado retrospectivamente como um dos maiores movimentos transformacionais na História da humanidade. A verdade é que todos e cada um de nós estamos a fazer a diferença, aquilo que representamos como veganos é a maior ameaça ao poder carnista dominante. A verdade é que, dizendo a verdade ao poder, estamos a mudar o curso da História.

[i] Para simplificar, uso os termos “maioritário” e “minoritário” para descrever o que é mais precisamente referido como grupos “alvo” e “agentes”.

[ii] Não pretendo equiparar a opressão de minorias ideológicas à de, por exemplo, minorias étnicas ou de género. Embora haja muitas semelhanças entre as opressões, também há diferenças significativas.

Tradução: Ilda Sereno Assunção
Artigo traduzido com a permissão da autora.
Original: https://www.onegreenplanet.org/animalsandnature/speaking-truth-to-power-understanding-the-dominant-animal-eating-narrative-for-vegan-empowerment-and-social-transformation/